domingo, 3 de junho de 2007

Raul Mourao em Lisboa-Critica.


Luis Inacio Guevara da silva de Raul Mourao.







O caroço com caroço

Esta poderia ser a história de um pedaço de Brasil que se soltou, içou as velas e, ao som do samba, atravessou o Atlântico e ancorou no centro de Lisboa. Na bagagem, a recentemente inaugurada Galeria 3+1 Arte Contemporânea trouxe uma programação que aposta na promoção de alguns dos mais relevantes nomes da cena artística contemporânea brasileira. Com a actual exposição, “Mecânico”, Raul Mourão, artista carioca que emergiu na década de 90, transporta-nos para a paisagem urbana e para o quotidiano citadino da grande metrópole em que se transformou a “cidade maravilhosa”.


Recorrendo a uma abordagem crítica, politizada e transgressora, o artista apoia-se num pertinente sentido de humor e perspicaz ironia para desenvolver projectos com um cunho, muitas vezes, marcadamente brasileiro sem que se possa considerar geograficamente balizado, dada a inevitabilidade e proliferação dos fenómenos inerentes à globalização. Trata-se de uma produção diversificada que abarca com coerência áreas tão diversas como a escultura, a instalação, o vídeo, o desenho, a fotografia, passando pela performance. Estão lá o futebol, o carnaval, o samba, e até mesmo o presidente Lula. Mas também a desmedida violência urbana, as constrangedoras e sintomáticas marcas da decadência da cultura de massas, a especulação imobiliária, bem como o constante clima de medo, insegurança e aprisionamento que coabita com a população.


Na mostra, cujo título alude ao facto de todos os trabalhos apresentados terem sido executados sem a intervenção directa da mão do artista, estão em exibição obras pertencentes a três séries distintas: Fitografias e Caderno de Anotações (trabalhos recentes) para além do vídeo Cão/Leão de 2002. Nas duas primeiras encontra-se presente a sua tendência plástica para a redução e padronização de carácter abstracto e geométrico (relação com a sinalética) de que resultam composições visualmente depuradas – reminiscências do construtivismo brasileiro. No vídeo, a estranheza, ironia, destabilização e perversidade associam-se ao carácter mais reinvindicativo e humorístico da sua obra.


Em Fitografias Mourão utiliza as mesmas fitas adesivas coloridas a que os comerciantes informais e ambulantes de bebidas recorrerm, no Rio de Janeiro, para decorar as suas geleiras. O resultado são estruturas de parede que remetem para a produção industrial sem revelarem o material e processo de composição. A criatividade brasileira, que se reflecte nas mais infímas soluções para tornar o quotidiano animado, surge nestas composições que também se assemelham a padrões de toalhas de praia ou a bandeiras de países imaginários.


A série Caderno de Anotações, dando continuidade à depuração estética e formal, é composta por um conjunto de 12 peças de placas de alumínio perfurado e 6 desenhos em grafite sobre papel. O seu ponto de partida são diversos desenhos que o artista regista frequentemente em blocos, encontrando inspiração na observação diária e directa de objectos que habitam o quotidiano citadino. Os mesmos são posteriormente digitalizados e manipulados aludindo à linguagem de sinalização dos painéis electrónicos.


O vídeo Cão/Leão resultou do registo ininterrupto de 12 horas na rotineira vida de um cachoro vira-lata que deambulava pelas ruas do Rio de Janeiro. Os 45 minutos apresentados, de suposta fama, são suficientes para captar a transformação do animal na caricatura de um personagem de realitiy-show, protagonista de uma novela da vida real, alheio, no entanto, a qualquer estratégia de manipulação. A cultura de massas e o facilitismo do estrelato resultante da divulgação nos media inverte a tendência do cão para seguir o homem e transforma o seu melhor amigo num concorrente quase à sua altura.


Com um percurso artístico que conheceu o ano passado o auge da visibilidade pública com o projecto Luladepelúcia - sátira e caricatura do presidente Lula personificado em bonecos de peluche - Mourão continua a cimentar um percurso que, com ironia, alerta para o facto da necessidade de ver para além das aparências, de desconfiar do imediato, de procurar o caroço no próprio caroço das mais suculentas frutas dos trópicos, de descobrir afinal o que é que a baiana tem através de um processo em que as expectativas do espectador saem burladas.

Cristina Campos.

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