terça-feira, 6 de maio de 2008

Anatomia da Specimen Art-Gabriel Bittar.

Gabriel Bittar


O artista plástico paulista Gabriel Bittar questiona se há ética em usar o corpo do outro como suporte artístico. Para adeptos de Specimen Art manter o corpo e a alma juntos é sinônimo de vida





A arte choca, e segundo muitos artistas, essa é uma de suas funções: gerar questionamento, discussões. Damien Hirst, um dos principais artistas vivos, e o mais bem pago atualmente, diz irônico: "afinal de contas, você quer apenas alegrar as paredes das pessoas". A Specimen Art choca simplesmente porque existem muitos tabus em relação ao nosso corpo e à morte. Somos feitos basicamente de água, de fluidos, e temos muito nojo disso. Urina, sangue, saliva, todos líquidos que produzimos são tidos por estes artistas como possíveis matérias-primas, mas não necessariamente para as "belas artes". O que é belo inclusive? Ou o feio? O que é natural, anormal? Esses artistas estão menos preocupados com os aspectos culturais, e mais com o que é real. "Se olhar para essas imagens faz com que seja mais fácil para nós olhar para o aspecto real dos erros da natureza, então terei aumentado a nossa percepção de que a verdadeira feiúra no mundo vem de nós - e não de fora" diz a fotógrafa Nancy Burson.

Marc Quinn, conhecido pela obra Self onde utilizou o próprio sangue na modelagem da imagem de seu rosto, recentemente gerou polêmica em Londres ao executar uma escultura. A obra de 3,5m de altura apresenta a imagem de uma deficiente física nua e grávida, disposta ao lado de outras estátuas de personalidades importantes da cidade. Segundo o artista, "a escultura grega clássica foi mutilada de alguma maneira". Observa ainda que as pessoas não se sentem desconfortáveis quando vêem uma estátua da antiguidade grega, mas sim quando vêem um mutilado ou um deficiente físico na rua.

Para a artista Marina Abramovic, manter o corpo e a alma juntos é sinônimo de vida. A performance, que foi uma das primeiras manifestações artísticas a pensar o corpo enquanto suporte, teve seu auge entre os anos 1970 e 1980 e vem sendo reciclada constantemente como explica Abramovic para a Revista E do Sesc. "Nos anos 70, a performance era muito conceitual, muito relacionada ao corpo e à moda. Nos anos 80, ela passou a acontecer principalmente dentro das galerias de arte e, por isso, estava relacionada às vendas que aconteciam dentro desse espaço - que é feito para isso mesmo, vender o que estava exposto ali. Mas não é essa a sua função, por isso ela teve de sair desses espaços e foi para os clubes noturnos, depois para o teatro, para o museu, voltou para a dança. Por isso, gosto de pensar na performance como uma fênix [ave mitológica que se deixava queimar num braseiro para depois renascer das próprias cinzas]. Ela está sempre queimando, morrendo e renascendo - de uma maneira diferente, com formas diferentes. Nos anos 90, ocorriam muitas performances também, mas não eram pensadas para serem realizadas diante de uma platéia; logo, foram rejeitadas pelos museus." Abramovic conhecida pela genialidade, simplicidade, e polêmicas que causou, que inclusive lembram muitos comentários feitos sobre a obra Exposicíon Nº1 do costa-riquenho Habacuc (em que, supostamente, durante uma instalação deixou um cachorro quase morrer de fome). A opinião pública é unânime: porque ele não fez isso com ele mesmo? Provavelmente funcionaria melhor. Abramovic realizou inúmeras performances onde se autoflagelava, ou ainda onde deixava que o público optasse por isso e ele mesmo implicasse danos físicos à artista, e assim o fizeram. Há ainda registro de suicídios em algumas performances mais radicais na década de 80. Que os artistas queiram usar o próprio corpo como forma de expressão é aceitável, mas usar o corpo alheio em um protesto pessoal, sem consentimento do outro, acredito que não, foge do aspecto do protesto e esbarra em questões éticas. A artista, pesquisadora e professora da Universidade de Caxias do Sul (RS) Diana Domingues, especializada em arte contemporânea, disse para o site G1, "em qualquer campo da atividade humana deve haver respeito à ética. A própria arte cobra esse respeito". Disse sobre a instalação de Habacuc.

A morte da arte ou a morte na arte?
O tabu da morte é tido como o principal, o mais forte, mais intenso tabu nos dias atuais. Teve seu surgimento no renascimento, com a descentralização de Deus, colocando o homem no centro do universo e de todas as coisas: o nascimento da noção de indivíduo. "Na Idade Média, as sepulturas ficavam na igreja estando ao mesmo tempo no centro da vida social", analisa o antropólogo Jose Carlos Rodrigues professor da PUC - RJ, autor do livro O Tabu da Morte. "Estamos reconhecendo o espírito da morte? Ou estamos barganhando com a tecnologia em troca de tempo?" Questiona Marc Quinn.

Andres Serrano, fotógrafo nova-iorquino, realizou uma série de fotografias intituladas The Morgue (O Necrotério), onde traz inúmeras fotografias tiradas com o fino filme fotográfico cibachrome de alta definição, fotografias impecáveis, no aspecto técnico excepcionalmente belas. Fotografou com os sentidos a flor-da-pele, entre outras, Pneumonia Due to Drowning III (Pneumonia Devido a afogamento III). A imagem do close de uma pequena mão de criança, solta, como em um momento de sono, repousa levemente sobre um tecido de algodão roxo-claro (muito comum em enxovais), uma pequena ferida no dorso que chama atenção pela simplicidade, como uma marca de nascença ou um carimbo, uma ferida simples, desviando a atenção do verdadeiro motivo da morte. A pele rosada, aparentemente viva, mas devidamente etiquetada no pulso.

Gabriel Bitar é artista plástico e vive em São Paulo


Artigo Publicado no jornal O POVO.

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