domingo, 20 de julho de 2008

ESPAÇO ASIÁTICO: OUTROS CENTROS, OUTRAS VISIBILIDADES?



O carácter transversal dos fenómenos globais tem esbatido o fosso entre culturas, trazendo para o centro das atenções, embora com diferentes intensidades, zonas que se encontravam arredadas dos núcleos centrais. A problematização (quase banalização) em torno dos binómios local/global e centro/periferia tem vindo a desmistificar o papel preponderante do eixo euro-americano, sem que isso implique um decréscimo da importância do seu posicionamento. O significado de tal desmistificação reflecte-se antes na possibilidade de outros contextos poderem partilhar a visibilidade outrora reservada aos tradicionais centros culturais. Para lá dos constrangimentos que possam persistir em qualquer contexto, a zona da Ásia Pacífico tem renovado determinados processos práticos e teóricos. O crescimento económico chegou com grande força através do Japão, tendo-se alargado a Hong Kong, Taiwan, Coreia do Sul, Singapura e posteriormente à China e à Índia. Pelo rumo da liberalização económica, e com as relações de distância e proximidade geradas pela competitividade, os países asiáticos, nomeadamente os do Extremo Oriente, procuram um lugar de destaque dentro do próprio contexto. A descentralização expandiu-se ao domínio cultural, suscitando novas abordagens artísticas e curatoriais, que têm vindo a ampliar um trabalho de pesquisa e auto-conhecimento. Neste sentido, tais abordagens constituem um núcleo múltiplo de interface artístico com um novo relevo no plano internacional.

A primeira fase dinâmica ocorreu logo no início dos anos noventa, coincidindo com uma conjuntura global vulnerável às transformações sociais e políticas, como o indiciam a abertura económica da China, o fim do modelo comunista/marxista da U.R.S.S., a queda do muro de Berlim e o massacre de Tiananmen, ambos em 1989. A arte contemporânea era então um campo desconhecido para a maioria dos públicos das cidades asiáticas, assim como era praticamente nulo o apoio à educação e à divulgação artística por parte do Estado. O estabelecimento de museus e centros de arte contemporânea em algumas cidades é bastante recente. Muitos deles adoptaram as siglas de museus ocidentais – um direito compreensível mas que não deixa de constituir um aspecto curioso tendo em conta que os conceitos de moderno e contemporâneo assumem contornos muito próprios nos diversos contextos e na programação dos museus.

O impulso artístico deve-se sobretudo ao despontar de espaços alternativos e ao apoio de mecenas privados. Dirigidos maioritariamente por artistas e jovens curadores, os espaços não foram constituídos de forma simultânea ou linear. Embora dependendo da heterogeneidade de cada cidade, perspectivaram objectivos idênticos quanto à experimentação e à ligação em rede para a construção de estratégias comuns, em locais onde as políticas culturais eram deficientes. Hong Kong e Pequim foram as primeiras cidades onde apareceram espaços dedicados à experimentação artística. A partir de 1998/99 outras cidades seguiram os seus passos: Seoul (SSamziespace, IIju Art House, Insa Art Center, Project Space Sarubia, Pool, Loop), Manila (Big SkyMind), Singapura (Plastique Kinetic Worms, The Artists Village), Tóquio (Ichi Ikeda Art Project), Cantão (Libreria Borges, Vitamin Creative Space, Big Tail Elephants, Yangjiang Group, U-thèque), Macau (Ox- Warehouse), Taipé (Whashang Art District, Bamboo Curtain Studio20), Xangai (Island6), Pequim (Loft New Media Art, Art Gas Station, Warehouse, Xray Art Center) e Hong-Kong (Cattle Depot Artist Village - 1aspace, Artist Comune e Videotage -, Fringe Club, Para/Site Art Space, Zuni Icosahedron).

Embora este género de espaços contribuisse inquestionavelmente para as dinâmicas culturais locais, a sua continuidade via-se constantemente ameaçada por diversos problemas subjacentes à organização de cada cidade. Por exemplo, no caso de Hong Kong, as dificuldades residiam na especulação imobiliária entre os sectores público e privado, dando azo a que os espaços mudassem sistematicamente de lugar. No caso de Pequim, para além deste problema em comum, assistiu-se também a um fosso entre a comunidade artística e os organismos do poder, que originou o encerramento de alguns espaços. A sua sobrevivência sempre dependeu por isso da conjuntura interna. Este cenário só foi alterado quando o trabalho desenvolvido pelos espaços alternativos começou a ganhar contornos que lhes permitiu ter algum relevo e reconhecimento. Cada espaço é um caso particular mas, de uma forma geral e progressiva, a maioria conseguiu cativar o interesse do público, obtendo mesmo cooperações do Estado a curto e médio prazo. Tal facto é um prenúncio de que os governos das cidades se tentam reajustar às novas circunstâncias, ainda que de modo inconstante e moroso. Presentemente, o âmbito de desempenho dos espaços é múltiplo, abrangendo as artes visuais e performativas (teatro experimental e dança), net-art, cinema documental, música, multimédia, design, publicações e organização de conferências. A linha programática é igualmente diversa, privilegiando a divulgação de nomes emergentes, focando-se na residência de artistas, no intercâmbio com outros países ou na aproximação à comunidade. Por isso mesmo o significado de “alternativo” no contexto asiático sempre se traduziu numa atitude de empenho e demanda. As acções do-it-yourself (DIY) fazem parte da postura do artista como algo natural, alargando-se previsivelmente ao trabalho curatorial. Circunscritos a contextos que foram desde sempre instáveis para as práticas artísticas, muitos procuraram experiências profissionais em países estrangeiros.

A segunda fase chegou no rescaldo da crise asiática de 1997-99, sensivelmente a partir de 2001, com a constituição de pólos museológicos, com o aumento de trienais e bienais, feiras de arte, com o deslocamento de curadores ocidentais para esta parte do mundo e de curadores asiáticos para o cenário ocidental. O dinamismo suscitou uma outra vaga de diálogos entre curadores e teóricos de diversas áreas para negociar novas formas de interculturalidade. Os campos de discussão cruzam locais e abordagens, integrando um leque de assuntos que vai desde o papel do Museu de Arte Contemporânea e do curador, passando pelos modelos expositivos e pelas políticas culturais, até aos valores asiáticos e ocidentais. No pano de fundo dos encontros culturais sente-se uma inquietação relativamente à renovada posição asiática e à sua ligação com os países ocidentais. A inquietação não consegue evitar um tom pendular entre o paternalismo do Ocidente, que se quer redimir pelos erros cometidos, e a desconstrução de conceitos que despertaram sentimentos antagónicos relativamente ao mundo ocidental. Não é fácil estabelecer vínculos transnacionais entre contextos com características tão diferentes mas, de certo modo, alguns debates tendem a ser repetitivos focando questões que deviam estar já ultrapassadas. Os “valores asiáticos” são significantes emocionais defendidos pelas camadas políticas de alguns países face à hegemonia do mundo ocidental enquanto poder colonizador. Segundo Amartya Sen, a exortação de tais valores provém geralmente de ambiguidades políticas internas que surgem para justificar o autoritarismo. Existe de facto uma atitude de “triunfalismo”; frases como “estamos finalmente centrados” fazem já parte da consciência asiática. Tal como a Europa, os países asiáticos partilham alianças, histórias e objectivos entre si. Constituem-se efectivamente micro e macro-regiões, onde se reivindicam outras posições. É plausível que nos diferentes cenários cresçam sentimentos nacionalistas (no sentido mais negativo do termo) e intolerâncias civilizacionais que infelizmente se revelam um pouco por toda a parte.

A importância que a Ásia assumiu é tão irrefutável, quanto é complexa a sua estrutura. A própria expressão “Ásia” não deixa de conter uma conotação abstracta quando olhamos a diversidade que a caracteriza. Entre outros aspectos, está aqui implícito o facto de o seu desenvolvimento económico e cultural não ter sido homogéneo. Neste sentido, a China apresenta-se como um paradigma de sucesso, o que obviamente não a exime de algumas problemáticas que transporta consigo. A visibilidade que a arte contemporânea chinesa conquistou durante as últimas décadas foi integralmente granjeada via circuito internacional. São vários os factores que contribuíram para a situação mas, entre eles, destacam-se dois: por um lado, a enorme receptividade por parte do mundo ocidental, sintoma da curiosidade por culturas não ocidentais, por outro lado, a inexistência a nível local de um ambiente propício à criação e à produção artística, que deu origem à emigração de muitos artistas. A arte contemporânea era observada como algo a recear, considerada subversiva e os artistas eram perseguidos se o conteúdo da sua obra fosse lesivo ao poder. Os poucos espaços alternativos que existiam eram os únicos sítios onde podiam expor os seus trabalhos.

O panorama mudou quando as obras compradas pelos coleccionadores e museus começaram atingir valores astronómicos. De qualquer forma, os apoios das instituições públicas chinesas continuam a ser uma realidade ambígua e delicada com que se tem de lidar a nível interno. Entretanto os artistas chineses têm adoptado atitudes contraditórias face ao próprio sucesso: ora assumem uma postura crítica quanto ao apetite excessivo dos países ocidentais pela conjuntura chinesa, mais do que pelo processo artístico; ora aderem totalmente ao sistema, procurando incluir na sua linguagem elementos que vão de encontro às expectativas do público; há outros que optam ainda pela discrição mantendo a sua linguagem artística distante do mainstream. Apesar de todos os benefícios que trouxe num curto espaço de tempo, o interesse gerou um “novo exotismo” obcecado pela diferença cultural, que é continuamente alimentado pelo mercado artístico. Com a especulação a que estão sujeitas, as obras correm o risco de se transformarem num produto massificado muito dependente das lógicas do mercado e dos públicos. Num momento em que proliferam as exposições de arte contemporânea chinesa – que chegam a incluir retrospectivas em museus ocidentais de renome internacional, ou semanas inteiras dedicadas ao tema – parece-me conveniente fazer uma pausa para pensar sobre este mediatismo e sobre o que ele traz de positivo e negativo para os artistas.

O protagonismo chinês foi uma das razões que me levou a investigar in situ as reacções locais a este fenómeno. Directamente ligada a esta, a segunda razão prende-se com a grande heterogeneidade do contexto chinês. Ainda que partilhem uma tradição cultural com o continente, as cidades do Sul da China (Hong Kong, Cantão, Macau e Taiwan na sua condição particular) construíram realidades linguísticas, políticas e sociais diferentes. É ponto assente que os artistas transportam experiências e linguagens que extrapolam os limites regionais. Mas também é um facto que as especificidades locais fazem parte da sua existência enquanto processo dinâmico, não devendo ser escamoteadas. Conhecer o tipo de elo que as diferentes comunidades mantêm (ou não) entre o presente e o passado recente, seja um passado colonial ou um regime autoritário, revela-se necessário para compreender determinados percursos artísticos. A permeabilidade linguística é uma prerrogativa tão vincada nas realidades chinesas que, dependendo do envolvimento com cada local, assume diferentes intensidades e, excedendo a sua condição real, é eleita pelos artistas como referente e como estratégia de abordagem a essa ligação com o passado. O mesmo se passa com as particularidades urbanas, cada vez mais apontadas como uma extensão relacional dos processos artísticos que entrecruzam o quotidiano, as artes visuais e a curadoria.

As comunidades artísticas de Hong Kong, Cantão e Taiwan, apesar de bastante activas, não partilham o sucesso chinês. A sua posição é pouco debatida internacionalmente, como é pouco conhecido um certo ressentimento induzido por esse sucesso alheio, que provoca ainda a destabilização dos mercados artísticos internos. Artistas e curadores de Hong Kong e Taiwan contemplam o sucesso chinês através do diálogo entre si: «Ambos, Hong Kong e Taiwan representam a sociedade chinesa, altamente modernizada. Todavia, a China, como continente, vê chegado o seu momento, no seu desenvolvimento económico, bem como na sua importância em diferentes plataformas mundiais (…) Hong Kong e Taiwan estão a entrar cada vez mais em desequilíbrio. Os aspectos económicos, culturais e políticos produziram imensas tensões e impasses. Mesmo na cena da arte contemporânea, à medida que a arte chinesa conquista a ribalta internacional, os artistas de Hong Kong e de Taiwan são marginalizados. Ao lidar com o perfil comum e divisionário da prática artística contemporânea face a tal situação, o projecto aspira evocar um novo paradigma discursivo que possa restaurar a plataforma da nossa própria subjectividade, de modo a participar no mundo global.»(1)

O press release da exposição “A Realm With No Coordinates”, um projecto de parceria entre as duas comunidades realizado em 2006, revela bem o tom ressentido que despertou localmente. O projecto entende que um cruzamento entre realidades criativas diferentes pode alterar um aspecto comum a ambos os territórios, isto é, pode ajudar a ultrapassar posicionamentos discretos capazes de desfrutarem também do relevo internacional. O discurso de “união de forças” pelo qual optaram não será a solução para ultrapassarem a sua existência discreta, sobretudo quando ela nem sempre se pauta pela qualidade das obras ou pela criatividade. O sucesso chinês deriva de uma série de circunstâncias externas e internas às quais não são alheias as trajectórias históricas e as contradições do mundo contemporâneo. O talento criativo deveria ser suficiente para garantir o desejo incondicional de todo o artista de ver reconhecido o seu trabalho. Obviamente não o é. Os critérios de inclusão, circulação e recepção das obras continuarão a ser condicionados por mecanismos inconstantes próprios do mundo artístico.

Os próximos textos são fruto do diálogo estabelecido com as comunidades artísticas de Hong Kong, Macau, Xangai e Pequim que, embora diferentes entre si, não deixam de compartir problemáticas semelhantes. Ao longo da investigação várias questões foram surgindo: Que ligações se estabelecem entre as várias comunidades chinesas e a China continental? Será legítimo falar de diferenças culturais e identitárias em relação a estes contextos? De que especificidades se revestem estas diferenças? Como é observado o internacionalismo da arte chinesa na própria China, e como encontramos o seu panorama artístico em cidades como Xangai e Pequim? Como se desenvolvem as estruturas da arte contemporânea em termos de instituições, espaços e mercado interno? Que apoios existem para os artistas e para a arte contemporânea nos diferentes sistemas chineses?

A proximidade possibilita uma outra percepção de realidades que a distância geralmente desvirtua. Nesta proximidade nem tudo é claro, simples ou acessível. Pelo contrário, a estranheza que nos suscita um lugar distante da nossa realidade cultural nunca é totalmente ultrapassada. Mas esse sentimento, que na China toma proporções sinuosas e intensas, faz parte de um extraordinário processo de aculturação que não deixa ninguém indiferente.


Sandra Lourenço

quinta-feira, 3 de julho de 2008

28º Bienal de São Paulo





Premissa

Em 1951, no texto de abertura do catálogo da I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Lourival Gomes Machado, Diretor Artístico do museu, escrevia:

“Por sua própria definição, a Bienal deveria cumprir duas tarefas principais: colocar a arte moderna do Brasil, não em simples confronto, mas em vivo contato com a arte do mundo, ao mesmo tempo em que, para São Paulo se buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial”. (pg. 14).



O tom otimista, a retórica cheia de esperanças, o engajamento com um tempo de reconstrução do mundo depois dos terríveis episódios da II Guerra Mundial, soam hoje como uma profecia, o lançamento de uma utopia, que cinqüenta e oito anos depois se realizou: São Paulo converteu-se num centro artístico internacional, uma cidade cosmopolita, uma referência na cena artística globalizada, enquanto o Brasil tornou-se um ponto de atração para artistas, curadores, galeristas e colecionadores internacionais. Artistas Brasileiros ocupam posições de destaque dentro da história e do discurso da modernidade pós-guerra, assim como na produção da visualidade contemporânea. Os objetivos de 1951 foram alcançados.

A pergunta que poderia ser colocada agora é se não seria o momento da Bienal de São Paulo avaliar e talvez considerar a possibilidade dela ter de se transformar ou substituir-se dentro de uma cidade com seis museus de arte, assim como uma série de centros culturais ativos e diversificados com programações sistemáticas de arte contemporânea local e internacional (vários com orçamentos proporcionalmente maiores que o da Bienal). Sem deixar de lembrar o panorama de coleções particulares importantes e representativas dentro do país, e a robustez do mercado de arte brasileiro local e internacional que a Bienal ajudou a consolidar, qual o papel que a Bienal desempenha hoje, como instituição pioneira no país e no continente, uma vez que também esses circuitos cresceram e se profissionalizaram, sendo parte de um sistema cultural globalizado? Talvez, uma pausa para um processo de auto-reflexão e crítica pudessem apontar para uma série de soluções coerentes para uma instituição que está se tornando redundante em seu contexto local e é incapaz de apresentar uma perspectiva crítica da era globalizada na qual está inserida. Deve-se notar, porém, que isso não é fenômeno ou prerrogativa endêmica meramente à Bienal de São Paulo. As condições são visíveis em muitas outras Bienais.

O modelo oitocentista de Bienal tem sido, desde o final dos anos 80, a estratégia mais usada por cidades e suas elites econômicas e políticas de ganharem visibilidade na aldeia global. A representação nacional não é mais o modelo vigente dentro das Bienais, porém uma política cultural baseada em identidade nacional prossegue mesmo em uma época na qual a função e o significado de fronteiras nacionais são questionados. Já são quase uma centena de bienais ao redor do mundo, todas mais ou menos trabalhando questões semelhantes, circulando diversas praticas artísticas de forma normativa. Está evidente que nesse contexto o modelo de Bienal tem possibilidades limitadas para uma faculdade crítica e um engajamento local, posto que opera dentro de um mecanismo que se alimenta e se reproduz como cogumelos, incessantemente. Como pode a Bienal de São Paulo reavaliar esse fenômeno cultural que se propaga em centros históricos (Veneza, por exemplo) assim como cidades que até recentemente eram vistas como sendo marginalizadas (Xangai, por exemplo) da mesma maneira? Que papel crítico pode a Bienal de São Paulo ter em uma época de consumo e turismo cultural? De que maneira pode ela trazer uma contribuição produtiva ao enquadramento deste debate com base na sua história e experiência como primeira instituição de seu gênero fora dos centros hegemônicos? Sistematizar uma reflexão sobre as bienais hoje, reavaliando suas qualidades e objetivos, revendo a sua agenda e sua função, pode representar uma possibilidade para a Bienal de São Paulo de retomar um papel dentro das muitas e diversas mostras de artes visuais periódicas que povoam o mundo no século XXI.

Recentemente, um novo fenômeno, no formato de um circuito global de feiras de arte, tem entrado em competição com as Bienais. Artistas freqüentam ambos os eventos, enquanto curadores incluíram a primeira como espaços privilegiados de pesquisa e como uma alternativa a visitas de estúdios de artista. Mas elas não são a mesma coisa: enquanto a feira de arte é um espaço primeira e principalmente comercial, de venda, a Bienal quer ser um de trocas livres e confrontos entre artistas, curadores, críticos e o público de arte. O que há sim é uma relação pouco transparente entre essa diferença fundamental, algumas feiras de arte apresentam sérios programas de palestras e exposições curadas, enquanto as Bienais se tornam cada vez mais dependentes do apoio de galerias no financiamento de participações de artistas. Afinal é notável o fato de que muitos dos projetos importantes desenvolvidos por artistas e apresentados em bienais, só foram possíveis porque foram financiados por suas galerias. E isso não é mau em si. O problema está em as Bienais, que, como tradicionais instâncias legitimadoras da arte contemporânea, agora estão em perigo de se tornarem meros agentes de um mercado ávido por carne fresca e pela insolência de artistas rebeldes, cujos trabalhos, colados com fita crepe, se convertem imediatamente em mercadoria sofisticada. Pior, considerando a perspectiva local inserida no circuito global em que as Bienais operam, elas correm o risco de se tornarem provedoras de um exotismo para o consumo de uma diversidade cultural, racial, e econômica, assim como álibis políticos e sociais do capitalismo transnacional.

Talvez, neste momento, todas as Bienais careçam de uma pausa para reflexão, de sistematizar conhecimento e experiência, e procurar especificidade e pertinência numa época em que o modelo parece criticamente exaurido e trivial (nada de novo, pois já se falava disso ao final dos anos 60, e então elas, as Bienais, eram pouco mais que doze!).

Talvez as Bienais, apesar do fluxo incessante de imagens, representações, e diversidade das práticas artísticas, e da voracidade da economia que alimenta o circuito, pudessem recuperar posições válidas se elas estivessem fundadas nas singularidades dos seus lugares de origem, localizadas nas demandas imediatas das regiões em que se inscrevem. Em lugar de tentar produzir uma visão totalizante e representativa da Arte, trata-se, talvez, de redirecionar sua vocação para delinear especificidades, produzir cartografias detalhadas, pondo em marcha um processo de trabalho investigativo e crítico, formal e sistemático, que questione, de modo produtivo, os movimentos e transformações percebidas num circuito pré-determinado, incluindo seus ecos e reverberações.

A 28ª Bienal de São Paulo se articulará em quatro componentes:

I – Praça

Os espaços do primeiro andar e do térreo terão uma ocupação e função diferentes do seu uso tradicional como espaço expositivo. O prédio será aberto à outra disposição, propondo uma nova relação entre a Bienal e seu entorno, o parque, os outros museus, a cidade. No primeiro andar (na parte que corresponde ao princípio da rampa de acesso ao segundo andar) serão colocados os serviços da exposição (bilheteria, receptivos, livraria, informações, meeting point, monitores, banheiros, lanchonete, elevadores, etc) e um conjunto de lounges para Internet e vídeo monitores, com uma extensão da Biblioteca no terceiro andar.

Os caixilhos e vidros que hoje fecham o térreo e o primeiro andar a partir da rampa serão removidos para que aquela área abra-se para o parque como uma grande praça, conforme o desenho original do projeto de Oscar Niemeyer. As jardineiras que ali um dia existiram serão restauradas aos seus lugares e o espaço será reabilitado (renovado). Uma série de acontecimentos se dará durante os 42 dias da exposição. Articulado com pequenos palcos, assentos e mobiliário, o espaço será projetado para acomodar áreas para discussão, teatro, performances, música, cinema e conversas com artistas, curadores, críticos, músicos, escritores, arquitetos.

A praça pública busca ser um espaço democrático, a ágora na tradição da polis, um território de encontros, confrontos, fricções. Um espaço para gerar energia, permitindo a aeração do prédio e dos programas da instituição. Além do sentido simbólico da Bienal de São Paulo abrir-se para rever e reafirmar seu lugar na cidade, a abertura desta parte do edifício resgatará o projeto original do pavilhão, pensado como uma praça para exibição de grandes equipamentos industriais, a serem contemplados dos terraços do mezanino.

II – O Vazio

A exposição do espaço vazio do segundo andar do pavilhão será um gesto radical de afirmando o ato de suspensão, elaborando uma análise sobre o modelo das bienais e seu papel no mundo contemporâneo. Esse gesto simbólico toma o vazio como o lugar onde as coisas são em potência, pleno e ativo, ao contrário de uma manifestação niilista, onde as coisas deixam de ser e perdem o sentido. Ele é fonte geradora, o território do devir, com múltiplas possibilidades e caminhos.

A apresentação teatral busca acentuar o caráter simbólico do ato de suspensão da exposição, para instaurar um momento de reflexão, o espaço vazio remete primeiro à avaliação de um processo, de verificação de seu estado e qualidade, assim como à intensa atividade artística que toma a cidade por ocasião das Bienais.

III – Biblioteca: Conferências, Documentos, Arquivo

No terceiro andar, no espaço climatizado, será instalada uma grande biblioteca, composta por um arquivo, um auditório, uma arena, uma sala de reuniões, uma sala de leitura grande, uma sala fechada para computadores e acesso a rede eletrônica, e uma coleção de catálogos, se possível, de todas as bienais no mundo hoje. Com o mesmo espírito da Praça no térreo, esse segmento tem como função ser o centro gerador de um conhecimento sistematizado sobre a própria Bienal de São Paulo, o modelo das bienais, o que elas representam, para pensar que futuro se pode querer para elas. Se a praça no térreo é o espaço do encontro, da energia epidérmica, sob a regência da intuição e dos sentidos, o conjunto do terceiro andar é o território da razão, o tempo e o lugar do registro da experiência, de colher e sistematizar o conhecimento, e pôr em prática uma reflexão organizada. Este segmento será articulado a partir do acervo do Arquivo Histórico Wanda Svevo, o único e mais valioso patrimônio da Fundação Bienal de São Paulo, a sua memória. É ele quem melhor pode contar o valioso trabalho realizado pela FBSP na formação do meio artístico brasileiro, desde a constituição do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1949.

Se essa Bienal propõe um momento de reflexão sobre o papel da instituição e seu projeto para arte contemporânea, levando em conta uma nova realidade local e internacional, ele requer uma revisão histórica das bienais de São Paulo, seu lugar no quadro das instituições de arte no Brasil, assim como uma discussão aprofundada sobre o modelo em que ela opera. A Biblioteca se constituirá de documentos, livros e depoimentos (de artistas, críticos, intelectuais e ex-curadores) selecionados e organizados com a colaboração de artistas convidados, e propostos ao público como possíveis entradas para a história das Bienais de São Paulo, assim como de outras Bienais, e as economias e culturas que elas representam. Será um espaço de pesquisa e reflexão, aberto ao público, e que deverá prover subsídios para o conhecimento e a compreensão da instituição e do modelo cultural que representa.

Assim como os outros componentes da mostra, o mobiliário e equipamentos para esse segmento também será objeto de trabalho encomendado a artistas/designers/arquitetos.

Também estamos trabalhando com artistas que investigam por meio de seus trabalhos os limites entre documento e representação, linguagem e leitura, história e ficção, para, a partir do material existente no arquivo da FBSP, produzirem outras leituras dele em trabalhos e intervenções que serão incorporados posteriormente ao acervo do Arquivo Wanda Svevo.

O ciclo de conferências será organizado a partir de quatro grandes entradas: 1) a Bienal de São Paulo e o meio artístico brasileiro; 2) agentes financeiros oficiais e privados reunindo agências governamentais, ONGs, fundações públicas e privadas, organizações fundamentais nas estratégias e estruturas das Bienais; 3) o modelo e o sistema das Bienais, reunindo diretores e curadores do maior número possível de organizações; 4) uma conferência ou painel, de caráter mais teórico e filosófico, refletindo sobre conceitos e parâmetros envolvidos no projeto curatorial da 28ª Bienal de São Paulo. Os trabalhos desenvolvidos serão registrados em publicações específicas produzindo um documento atualizado sobre o sistema das Bienais, sua economia, desempenho e possibilidades no século XXI.

IV -Publicações, Website

Considerando o modelo proposto para a 28ª Bienal de São Paulo, as publicações são parte integrante do projeto. Porém deve ficar claro que os volumes principais só poderão ser lançados depois do fim exposição, com o encerramento dos programas realizados na Praça e na Biblioteca. Para a abertura, estará disponível o guia da exposição detalhando o programa das conferências e atividades na praça, assim como depoimentos de artistas e curadores.

Também fica claro que dentro desta proposta o website da 28ª Bienal de São Paulo será de importância fundamental na criação de um espaço para a difusão do evento local e internacionalmente, assim como uma maneira dentro da qual um público mais abrangente poderá acompanhar o processo de reflexão e produção, uma ferramenta para contribuição, acessando e trocando idéias com pessoas ao redor do mundo que partilham de um interesse no debate.

Programa Educativo

Um dos principais desafios da 28ª Bienal de São Paulo é o seu programa educativo. Considerando que o tema da Conferência é a própria Bienal e o que será apresentado no 2º andar é um espaço vazio entre dois campos de intensa energia (a Praça – intuição e os sentidos; a Biblioteca – a razão sistematizada), pode-se pensar que esse conjunto permitirá o desenvolvimento de uma série de atividades em torno a experiências do vazio como o território da criatividade. Em outras palavras, o território do vazio é o lugar onde a intuição e a razão encontra solo propício para fazer emergir as potências da invenção na arte. Outro caminho importante será a recuperação das memórias das Bienais de São Paulo para o público. Serão desenvolvidas uma série de atividades que mostrem as contribuições dessas mostras para a formação do meio artístico brasileiro e para a história da arte.


São Paulo, Abril de 2008.

Ivo Mesquita, Curador Chefe
Ana Paula Cohen, Curadora



LINK
www.bienalsaopaulo.globo.com