domingo, 20 de julho de 2008

ESPAÇO ASIÁTICO: OUTROS CENTROS, OUTRAS VISIBILIDADES?



O carácter transversal dos fenómenos globais tem esbatido o fosso entre culturas, trazendo para o centro das atenções, embora com diferentes intensidades, zonas que se encontravam arredadas dos núcleos centrais. A problematização (quase banalização) em torno dos binómios local/global e centro/periferia tem vindo a desmistificar o papel preponderante do eixo euro-americano, sem que isso implique um decréscimo da importância do seu posicionamento. O significado de tal desmistificação reflecte-se antes na possibilidade de outros contextos poderem partilhar a visibilidade outrora reservada aos tradicionais centros culturais. Para lá dos constrangimentos que possam persistir em qualquer contexto, a zona da Ásia Pacífico tem renovado determinados processos práticos e teóricos. O crescimento económico chegou com grande força através do Japão, tendo-se alargado a Hong Kong, Taiwan, Coreia do Sul, Singapura e posteriormente à China e à Índia. Pelo rumo da liberalização económica, e com as relações de distância e proximidade geradas pela competitividade, os países asiáticos, nomeadamente os do Extremo Oriente, procuram um lugar de destaque dentro do próprio contexto. A descentralização expandiu-se ao domínio cultural, suscitando novas abordagens artísticas e curatoriais, que têm vindo a ampliar um trabalho de pesquisa e auto-conhecimento. Neste sentido, tais abordagens constituem um núcleo múltiplo de interface artístico com um novo relevo no plano internacional.

A primeira fase dinâmica ocorreu logo no início dos anos noventa, coincidindo com uma conjuntura global vulnerável às transformações sociais e políticas, como o indiciam a abertura económica da China, o fim do modelo comunista/marxista da U.R.S.S., a queda do muro de Berlim e o massacre de Tiananmen, ambos em 1989. A arte contemporânea era então um campo desconhecido para a maioria dos públicos das cidades asiáticas, assim como era praticamente nulo o apoio à educação e à divulgação artística por parte do Estado. O estabelecimento de museus e centros de arte contemporânea em algumas cidades é bastante recente. Muitos deles adoptaram as siglas de museus ocidentais – um direito compreensível mas que não deixa de constituir um aspecto curioso tendo em conta que os conceitos de moderno e contemporâneo assumem contornos muito próprios nos diversos contextos e na programação dos museus.

O impulso artístico deve-se sobretudo ao despontar de espaços alternativos e ao apoio de mecenas privados. Dirigidos maioritariamente por artistas e jovens curadores, os espaços não foram constituídos de forma simultânea ou linear. Embora dependendo da heterogeneidade de cada cidade, perspectivaram objectivos idênticos quanto à experimentação e à ligação em rede para a construção de estratégias comuns, em locais onde as políticas culturais eram deficientes. Hong Kong e Pequim foram as primeiras cidades onde apareceram espaços dedicados à experimentação artística. A partir de 1998/99 outras cidades seguiram os seus passos: Seoul (SSamziespace, IIju Art House, Insa Art Center, Project Space Sarubia, Pool, Loop), Manila (Big SkyMind), Singapura (Plastique Kinetic Worms, The Artists Village), Tóquio (Ichi Ikeda Art Project), Cantão (Libreria Borges, Vitamin Creative Space, Big Tail Elephants, Yangjiang Group, U-thèque), Macau (Ox- Warehouse), Taipé (Whashang Art District, Bamboo Curtain Studio20), Xangai (Island6), Pequim (Loft New Media Art, Art Gas Station, Warehouse, Xray Art Center) e Hong-Kong (Cattle Depot Artist Village - 1aspace, Artist Comune e Videotage -, Fringe Club, Para/Site Art Space, Zuni Icosahedron).

Embora este género de espaços contribuisse inquestionavelmente para as dinâmicas culturais locais, a sua continuidade via-se constantemente ameaçada por diversos problemas subjacentes à organização de cada cidade. Por exemplo, no caso de Hong Kong, as dificuldades residiam na especulação imobiliária entre os sectores público e privado, dando azo a que os espaços mudassem sistematicamente de lugar. No caso de Pequim, para além deste problema em comum, assistiu-se também a um fosso entre a comunidade artística e os organismos do poder, que originou o encerramento de alguns espaços. A sua sobrevivência sempre dependeu por isso da conjuntura interna. Este cenário só foi alterado quando o trabalho desenvolvido pelos espaços alternativos começou a ganhar contornos que lhes permitiu ter algum relevo e reconhecimento. Cada espaço é um caso particular mas, de uma forma geral e progressiva, a maioria conseguiu cativar o interesse do público, obtendo mesmo cooperações do Estado a curto e médio prazo. Tal facto é um prenúncio de que os governos das cidades se tentam reajustar às novas circunstâncias, ainda que de modo inconstante e moroso. Presentemente, o âmbito de desempenho dos espaços é múltiplo, abrangendo as artes visuais e performativas (teatro experimental e dança), net-art, cinema documental, música, multimédia, design, publicações e organização de conferências. A linha programática é igualmente diversa, privilegiando a divulgação de nomes emergentes, focando-se na residência de artistas, no intercâmbio com outros países ou na aproximação à comunidade. Por isso mesmo o significado de “alternativo” no contexto asiático sempre se traduziu numa atitude de empenho e demanda. As acções do-it-yourself (DIY) fazem parte da postura do artista como algo natural, alargando-se previsivelmente ao trabalho curatorial. Circunscritos a contextos que foram desde sempre instáveis para as práticas artísticas, muitos procuraram experiências profissionais em países estrangeiros.

A segunda fase chegou no rescaldo da crise asiática de 1997-99, sensivelmente a partir de 2001, com a constituição de pólos museológicos, com o aumento de trienais e bienais, feiras de arte, com o deslocamento de curadores ocidentais para esta parte do mundo e de curadores asiáticos para o cenário ocidental. O dinamismo suscitou uma outra vaga de diálogos entre curadores e teóricos de diversas áreas para negociar novas formas de interculturalidade. Os campos de discussão cruzam locais e abordagens, integrando um leque de assuntos que vai desde o papel do Museu de Arte Contemporânea e do curador, passando pelos modelos expositivos e pelas políticas culturais, até aos valores asiáticos e ocidentais. No pano de fundo dos encontros culturais sente-se uma inquietação relativamente à renovada posição asiática e à sua ligação com os países ocidentais. A inquietação não consegue evitar um tom pendular entre o paternalismo do Ocidente, que se quer redimir pelos erros cometidos, e a desconstrução de conceitos que despertaram sentimentos antagónicos relativamente ao mundo ocidental. Não é fácil estabelecer vínculos transnacionais entre contextos com características tão diferentes mas, de certo modo, alguns debates tendem a ser repetitivos focando questões que deviam estar já ultrapassadas. Os “valores asiáticos” são significantes emocionais defendidos pelas camadas políticas de alguns países face à hegemonia do mundo ocidental enquanto poder colonizador. Segundo Amartya Sen, a exortação de tais valores provém geralmente de ambiguidades políticas internas que surgem para justificar o autoritarismo. Existe de facto uma atitude de “triunfalismo”; frases como “estamos finalmente centrados” fazem já parte da consciência asiática. Tal como a Europa, os países asiáticos partilham alianças, histórias e objectivos entre si. Constituem-se efectivamente micro e macro-regiões, onde se reivindicam outras posições. É plausível que nos diferentes cenários cresçam sentimentos nacionalistas (no sentido mais negativo do termo) e intolerâncias civilizacionais que infelizmente se revelam um pouco por toda a parte.

A importância que a Ásia assumiu é tão irrefutável, quanto é complexa a sua estrutura. A própria expressão “Ásia” não deixa de conter uma conotação abstracta quando olhamos a diversidade que a caracteriza. Entre outros aspectos, está aqui implícito o facto de o seu desenvolvimento económico e cultural não ter sido homogéneo. Neste sentido, a China apresenta-se como um paradigma de sucesso, o que obviamente não a exime de algumas problemáticas que transporta consigo. A visibilidade que a arte contemporânea chinesa conquistou durante as últimas décadas foi integralmente granjeada via circuito internacional. São vários os factores que contribuíram para a situação mas, entre eles, destacam-se dois: por um lado, a enorme receptividade por parte do mundo ocidental, sintoma da curiosidade por culturas não ocidentais, por outro lado, a inexistência a nível local de um ambiente propício à criação e à produção artística, que deu origem à emigração de muitos artistas. A arte contemporânea era observada como algo a recear, considerada subversiva e os artistas eram perseguidos se o conteúdo da sua obra fosse lesivo ao poder. Os poucos espaços alternativos que existiam eram os únicos sítios onde podiam expor os seus trabalhos.

O panorama mudou quando as obras compradas pelos coleccionadores e museus começaram atingir valores astronómicos. De qualquer forma, os apoios das instituições públicas chinesas continuam a ser uma realidade ambígua e delicada com que se tem de lidar a nível interno. Entretanto os artistas chineses têm adoptado atitudes contraditórias face ao próprio sucesso: ora assumem uma postura crítica quanto ao apetite excessivo dos países ocidentais pela conjuntura chinesa, mais do que pelo processo artístico; ora aderem totalmente ao sistema, procurando incluir na sua linguagem elementos que vão de encontro às expectativas do público; há outros que optam ainda pela discrição mantendo a sua linguagem artística distante do mainstream. Apesar de todos os benefícios que trouxe num curto espaço de tempo, o interesse gerou um “novo exotismo” obcecado pela diferença cultural, que é continuamente alimentado pelo mercado artístico. Com a especulação a que estão sujeitas, as obras correm o risco de se transformarem num produto massificado muito dependente das lógicas do mercado e dos públicos. Num momento em que proliferam as exposições de arte contemporânea chinesa – que chegam a incluir retrospectivas em museus ocidentais de renome internacional, ou semanas inteiras dedicadas ao tema – parece-me conveniente fazer uma pausa para pensar sobre este mediatismo e sobre o que ele traz de positivo e negativo para os artistas.

O protagonismo chinês foi uma das razões que me levou a investigar in situ as reacções locais a este fenómeno. Directamente ligada a esta, a segunda razão prende-se com a grande heterogeneidade do contexto chinês. Ainda que partilhem uma tradição cultural com o continente, as cidades do Sul da China (Hong Kong, Cantão, Macau e Taiwan na sua condição particular) construíram realidades linguísticas, políticas e sociais diferentes. É ponto assente que os artistas transportam experiências e linguagens que extrapolam os limites regionais. Mas também é um facto que as especificidades locais fazem parte da sua existência enquanto processo dinâmico, não devendo ser escamoteadas. Conhecer o tipo de elo que as diferentes comunidades mantêm (ou não) entre o presente e o passado recente, seja um passado colonial ou um regime autoritário, revela-se necessário para compreender determinados percursos artísticos. A permeabilidade linguística é uma prerrogativa tão vincada nas realidades chinesas que, dependendo do envolvimento com cada local, assume diferentes intensidades e, excedendo a sua condição real, é eleita pelos artistas como referente e como estratégia de abordagem a essa ligação com o passado. O mesmo se passa com as particularidades urbanas, cada vez mais apontadas como uma extensão relacional dos processos artísticos que entrecruzam o quotidiano, as artes visuais e a curadoria.

As comunidades artísticas de Hong Kong, Cantão e Taiwan, apesar de bastante activas, não partilham o sucesso chinês. A sua posição é pouco debatida internacionalmente, como é pouco conhecido um certo ressentimento induzido por esse sucesso alheio, que provoca ainda a destabilização dos mercados artísticos internos. Artistas e curadores de Hong Kong e Taiwan contemplam o sucesso chinês através do diálogo entre si: «Ambos, Hong Kong e Taiwan representam a sociedade chinesa, altamente modernizada. Todavia, a China, como continente, vê chegado o seu momento, no seu desenvolvimento económico, bem como na sua importância em diferentes plataformas mundiais (…) Hong Kong e Taiwan estão a entrar cada vez mais em desequilíbrio. Os aspectos económicos, culturais e políticos produziram imensas tensões e impasses. Mesmo na cena da arte contemporânea, à medida que a arte chinesa conquista a ribalta internacional, os artistas de Hong Kong e de Taiwan são marginalizados. Ao lidar com o perfil comum e divisionário da prática artística contemporânea face a tal situação, o projecto aspira evocar um novo paradigma discursivo que possa restaurar a plataforma da nossa própria subjectividade, de modo a participar no mundo global.»(1)

O press release da exposição “A Realm With No Coordinates”, um projecto de parceria entre as duas comunidades realizado em 2006, revela bem o tom ressentido que despertou localmente. O projecto entende que um cruzamento entre realidades criativas diferentes pode alterar um aspecto comum a ambos os territórios, isto é, pode ajudar a ultrapassar posicionamentos discretos capazes de desfrutarem também do relevo internacional. O discurso de “união de forças” pelo qual optaram não será a solução para ultrapassarem a sua existência discreta, sobretudo quando ela nem sempre se pauta pela qualidade das obras ou pela criatividade. O sucesso chinês deriva de uma série de circunstâncias externas e internas às quais não são alheias as trajectórias históricas e as contradições do mundo contemporâneo. O talento criativo deveria ser suficiente para garantir o desejo incondicional de todo o artista de ver reconhecido o seu trabalho. Obviamente não o é. Os critérios de inclusão, circulação e recepção das obras continuarão a ser condicionados por mecanismos inconstantes próprios do mundo artístico.

Os próximos textos são fruto do diálogo estabelecido com as comunidades artísticas de Hong Kong, Macau, Xangai e Pequim que, embora diferentes entre si, não deixam de compartir problemáticas semelhantes. Ao longo da investigação várias questões foram surgindo: Que ligações se estabelecem entre as várias comunidades chinesas e a China continental? Será legítimo falar de diferenças culturais e identitárias em relação a estes contextos? De que especificidades se revestem estas diferenças? Como é observado o internacionalismo da arte chinesa na própria China, e como encontramos o seu panorama artístico em cidades como Xangai e Pequim? Como se desenvolvem as estruturas da arte contemporânea em termos de instituições, espaços e mercado interno? Que apoios existem para os artistas e para a arte contemporânea nos diferentes sistemas chineses?

A proximidade possibilita uma outra percepção de realidades que a distância geralmente desvirtua. Nesta proximidade nem tudo é claro, simples ou acessível. Pelo contrário, a estranheza que nos suscita um lugar distante da nossa realidade cultural nunca é totalmente ultrapassada. Mas esse sentimento, que na China toma proporções sinuosas e intensas, faz parte de um extraordinário processo de aculturação que não deixa ninguém indiferente.


Sandra Lourenço

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