domingo, 26 de agosto de 2007

ARTE ATUAL-Patrick Van Caeckenbergh




Nascido em 1960 na Bélgica e compatriota de Wim Delvoye (1965), protege a sua liberdade criadora dentro da cerca de um jardim fechado e remete-nos para o imaginário dos livros de fadas e demónios característico da cultura europeia do norte ocidental, particularmente da tradição flamenga. Este artista começou a sua carreira hibernando, literalmente, dentro de uma “Living Box” (1982), espécie de abrigo precário construído a partir de tiras de madeira e cortinas. Viveu dentro deste habitat, simultaneamente sedentário e móvel, entre 1980 e 1984. Este habitáculo que adquiriu o estatuto de obra de arte em 1982 é uma espécie de casa “sobre” as costas como possuem certos animais, como o caracol, a tartaruga as ostras e os mexilhões. O termo que dá título a esta sua primeira retrospectiva em França, “Les bicoques”, pode ser traduzido por conchas ou baiucas.

A Maison Rouge, onde está patente a exposição, foi criada por Antoine de Galbert, e caracteriza-se por uma selecção de mostras bastante personalizada, que concilia retrospectivas de artistas de renome internacional, como Ann Hamilton ( “Phora”, 2005), com artistas do meio parisiense como é Denise Aubertin (“Les livres cuits”, 2006) que estão ausentes da bolsa de valores da arte contemporânea internacional. Existe neste espaço uma programação que privilegia a divulgação de colecções privadas e denota a preferência dada pelo seu fundador à arte bruta e contemporânea na sua expressão primitiva e sexuada.

As quatro exposições deste Verão patentes na Maison Rouge são denominadores comuns desta escolha pessoal: Flavio Favelli concebe uma esplanada para o café da instituição sob a aura dos “Poémes Saturniens” de Paul Verlaine, com mesas e cadeiras lacadas a preto cobertas de borracha preta e com uma iluminação que se faz através de lustres. Felice Varini pinta uma das áreas da Maison Rouge criando uma intervenção cinética que funciona em anamorfose com a perspectiva do espectador, evoluindo com a sua deslocação no espaço. O Pavillon Seroussi foi fruto de um concurso de arquitectura promovido com a finalidade de conceber a casa para o coleccionador privado dos nossos dias, em que participaram 6 agências de arquitectura. E é neste núcleo expositivo dedicado às arquitecturas que se insere Patrick Van Caeckenbergh.

A partir do longo corredor de acesso à principal área expositiva da Fundação avistamos uma cerca de jardim em metal - o portão está aberto e na parede aparecem duas imagens representando o Sagrado Coração de Jesus, com a respectiva coroa de espinhos e a frase incrita “Jardins Clos. Quando se entra no interior do gradeamento vê-se uma série de redomas de vidro, dispostas umas dentro das outras à semelhança das matrioskas russas (“Les oubliettes”). Sinto-me dentro de um cabinet de curiosités, que é afinal uma “Collection de peaux” disposta em dois dos muros da Maison Rouge. São amostras de 5000 variedades de epidermes que, para meu espanto, produzem um misto de prazer, como aquele que sinto ao presenciar o deleite de João César Monteiro ao guardar mais um exemplar na sua colecção de pêlos púbicos femininos (em as “Bodas de Deus”, 1999), a par da amarga lembrança das experiências nazis. Os crâneos de uma série de esqueletos juntam as mãos numa prece desconhecida em “La couronne des dieux suppliants”, os corpos estão cobertos pela saia em veludo de um menino de coro e são os deuses que se ajoelham pelos homens. Esta obra encontra-se ladeada pelas amostras de pele que descobri serem colagens de revistas pornográficas.

Por vezes as criações de Caeckenbergh possuem uma vertente marcadamente primitiva, com influências Dada; apresentam visíveis as marcas de manufactura do seu autor e a inerente sujidade ou imperfeição que resulta da prática de bricolage.

A arte feita à mão. Existe uma dicotomia sempre visível na arte: por um lado, a escolha de certos artistas em encarnar as próprias obras, tocando-as de finitude, libertando ficções individuais. Por outro, os que criam dentro da epopeia tecnológica e digital, num universo em que a perfeição formal é uma exigência. Para estes últimos as ficções de um universo pessoal são apresentadas de uma forma quase totalitária, como um sonho de futuro que todos deveríamos partilhar, como acontece, por exemplo, em “The Creammaster Cycle” de Matthew Barney.

Um paravento (“Le paravent”) em madeira ocupa a área central da sala e esconde uma mesa longa de piquenique que revela, nos pratos deixados vazios, alguns restos da receita “velouté du potager au homard fin” (sopa de legumes com lagostins) de Patrick Van Caeckenbergh. Os copos vazios e as flores permanecerão até à proxima refeição que será partilhada com o artista que convida o seu público a comer e a conviver dentro do espaço expositivo. A próxima será no dia 13 de Setembro, às 19 horas.

Uma porta iluminada de 20 centímetros abre-se por detrás do paravento. É a porta da casa do rato (“Le trou de souris”). Se espreitarmos não vemos o seu habitante mas somos remetidos, uma vez mais, para as histórias dos Irmãos Grimm.

Na parte final do percurso surge uma série de vitrines onde 6 maquetes aludem às diferentes fases do trabalho do artista. Contêm os seus principais projectos, incluindo o da concha-habitat-móvel (“La coquille”): escultura móvel semelhante a uma alcofa para adultos. É mais uma interpretação do Nautilus, a par das pequenas reproduções que se encontravam nos cabinets de curiosités renascentistas. Neste caso com o tamanho necessário para transportar o próprio artista viajante. São variações de casas, de anatomias arquitectónicas e humanas que podemos apreciar nesta mostra pessoal.

O percurso no interior deste mundo-jardim termina com um longo andor suspenso, azul celeste, semelhante aos que encontramos em inúmeras procissões religiosas. O visitante caminha por debaixo deste céu em cetim e tem a ligeira sensação que vai começar a levitar, e talvez passar para um outro mundo.

Patrick Van Caeckenberg revisita a tradição mística das peregrinações e a tradição pictural bíblica flamenga criando com as suas obras uma enciclopédia pessoal. Dentro deste jardim privado promove encontros sensoriais e mesmo gastronómicos (uma das uniões nem sempre assumida na arte), com o seu público.

Existirá nos anos 2000 uma escola flamenga feita de nomes como Jan Fabre (1958), Delvoye ou Caeckenberg, todos nascido na década de 60? Optam muitas vezes, com as diferenças que os separam, por materiais e técnicas tradicionais como o empalhamento de animais presente em “Les messagers de la mort” de Jan Fabre ou o “Rex” de Wim Delvoye. No entanto só Caeckenberg abre as portas dos seu jardim para levar consigo o visitante a jantar. Estamos longe da “white box” da Galerie DanielTemplon. Encontramo-nos na casa vermelha de Paris.


Sílvia Guerra

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